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sexta-feira, 28 de março de 2014

Artigos

REFLEXOS

Nos anos setenta, um samba-enredo trazia o refrão: “quem viveu sabe, quem não viu vai sonhar”, e nos conduzia a um passado bastante saudosista. Quem acompanha o nosso trabalho sabe que não temos nenhuma afinidade com o mundo do samba. Já os nossos leitores sabem ou conhecem as nossas ligações com o esporte, principalmente com o futebol; e mais ainda, com o futebol vivido e jogado na periferia. É ali em que a paixão aflora, é ali onde a nossa realidade é mostrada com as suas cores reais, sem a máscara da mentira, sem o retoque da maquiagem, sem o milagre da imagem retocada nos computadores.
Não por coincidência, é nessa periferia onde ocorre a mescla samba-futebol que as religiões plantam as sementes da fé, onde a carência é manifestada não apenas na panela vazia, mas também na luta latente em busca de melhores condições de vida. Onde o poder público usa de todos os meios para impor a “sua” verdade, geralmente algo muito diferente do mundo real, do cotidiano.
Também não foi por mera coincidência que abrimos o texto citando esporte e religião. Enquanto no esporte a periferia se transformou em reduto de sonhos, onde jovens e crianças aspiram o estrelato e o sucesso profissional e financeiro, essa mesma periferia virou objetivo constante das religiões. Todos nós sabemos da importância da fé na formação dos nossos jovens, mas algo maior vem ocorrendo.
Alvo constante do consumismo e depositária fiel de sonhos geralmente inatingíveis, a população da periferia assiste ao assédio constante de marqueteiros que vendem a uma juventude desassistida imagens falsas de um sucesso duvidoso. É ali, também, que o Governo planta sementes imaginárias, enquanto a seleção de futebol se transforma em herdeira de nossos sonhos, principal representante dos nossos mais importantes objetivos, retrato de nossa sociedade vitoriosa.
É nesse terreno que o marketing esportivo é mais eficiente, semeando imagens de jovens promessas como se fossem craques, na mesma proporção em que as religiões mostram o caminho do sucesso financeiro e amoroso como fosse a única meta do ser humano sobre a terra.
O sentimento do “ser” perde para o “ter”: ter o telefone moderno, o tablet, o computador, o calçado, a roupa de grife é muito mais importante do que ir em busca de uma formação profissional, de um crescimento cultural. Vende-se a imagem do ídolo como se fosse ele o alvo mais atingível, espelho de uma população sem reflexos.
A fábrica de ídolos tem atividade constante. A sua linha de produção arregimenta a matéria prima na carência, e procura moldá-la de acordo com a necessidade da outra ponta, onde o ídolo tem que apresentar o talento para se perpetuar no topo da pirâmide; para que os desassistidos possam olhar para o alto e sentir aquela esperança que jamais será atingida, porque apenas meia dúzia de privilegiados terão essa condição. Serão os escolhidos por Deus? Quem sabe.
A fé nos impele a acreditar e viver na esperança de um sim; o discernimento nos permite a desconfiança ao depararmos com o poder da manipulação principalmente sobre os menos instruídos. Uma manipulação que sempre existiu, embora no todo tenhamos um imenso sentimento de perda. E aí temos que somar perda e saudosismo, numa mistura onde tínhamos igrejas e sociedade de portas e corações abertos, estádios repletos de talentos e uma periferia sofredora, embora dotada de anseios bem diferentes do que vemos agora.
Assim, plagiando o velho samba-enredo, temos que enfatizar que “quem viveu viveu sempre cultural; tabletefabricando santos, ao mesmo tempo que o esporte fabrica sabe, quem não viu vai sonhar” e, mais do que nunca, depositar todas as fichas nos sonhos, embora tenhamos a certeza de que pouco, muito pouco será feito para que as aspirações, os anseios da sociedade se transformem em realidade. Uma realidade totalmente diferente daquele que o poder maior, a mídia oficial tenta incutir em nossas mentes.
 
Vitor Sapienza é economista e agente fiscal de rendas aposentado

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