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Da Irretroatividade da súmula vinculante nº 24
O Supremo Tribunal Federal (STF), em 11 de dezembro de 2009, publicou a Súmula Vinculante nº 24, firmando o entendimento de que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Assim, a jurisprudência passou a exigir o prévio esgotamento da via administrativa para que possa haver persecução penal do crime de sonegação fiscal, estabelecendo-se uma dependência entre as esferas penal e administrativa.
Referida Súmula Vinculante acabou por afetar também o reconhecimento judicial do momento da consumação do crime. Antes, esse crime consumava-se no ato do não recolhimento ou do recolhimento a menor do tributo. Após sua edição, entende-se que tal crime se consuma na data do trânsito em julgado da discussão administrativa.
Essa mudança influencia a data de início do prazo prescricional, ou seja, do lapso de tempo que o Estado detém para agir em busca condenação do agente.
Isso poque a sistemática atual do Código Penal determina que não se conta o lapso temporal entre a data do fato e o recebimento da denúncia, para fins do cálculo da prescrição retroativa, fazendo com que ainda existam ações penais tramitando sobre fatos ocorridos há quase duas décadas.
Contudo, a irretroatividade de interpretação jurisprudencial prejudicial ao acusado, ainda que consolidada em Súmula Vinculante, é um debate constitucional que concerne a um dos pilares do Estado Democrático de Direito Brasileiro, que é a segurança jurídica, insculpida no artigo 5º, inciso XL, da Constituição (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”).
Em que pese sua importância, o debate tem sido pouco aprofundado em nossos tribunais, permanecendo o entendimento genérico de que Súmula Vinculante não é lei e, portanto, sua aplicação retroage para fatos anteriores à sua edição. Essa vem sendo, inclusive, a posição do STF em recentes julgamentos.
Porém, a Colenda 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento notório e extremamente minucioso sobre o tema, mas, infelizmente ainda minoritário, tomando a jurisprudência como fonte do direito e reconhecendo na segurança jurídica um princípio básico do Estado de Direito, fazendo a necessária diferenciação entre segurança jurídica (externa, visível, objetiva, ou seja, é a l\\ei posta), e certeza do direito (interna, decorrente das decisões judiciais que adequadamente aplicam a lei), mas reconhecendo a sinergia entre ambas, decidiu que os efeitos da Súmula Vinculante n. 24 só existem a partir da “data de sua publicação, dia 11/12/2009, momento a partir do qual a interpretação emanada do enunciado, quanto à tipificação do crime do art. 1º, I, II, III e IV, da Lei n. 8.137/1991, cria a força de um verdadeiro stare decisis, tal qual presente no modelo judicial anglo saxão (commow law)”. (AgRg \∏no AREsp 85.777/SP, Sexta Turma, Relator Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 17/11/2016). Esse entendimento vai ao encontro da própria Constituição, que, em seu artigo 103-A, reforça que súmulas vinculantes só têm efeito a partir de sua publicação.
É preciso notar que os tribunais, por meio de seus julgados, firmam as regras de convivência social, razão pela qual mudanças bruscas em matéria penal somente deveriam ser aplicáveis a casos futuros.
Interpretação diversa fere o princípio da segurança jurídica disposto no artigo 5º, inciso XL, da Constituição, principalmente quando se trata de súmula vinculante que inova o ordenamento jurídico, impondo dever de obediência aos tribunais pátrios, tal como uma lei.
Assim, como garantia da segurança jurídica, a regra prevista na Súmula Vinculante nº 24 não deve produzir efeitos para fatos pretéritos à sua publicação, sendo que os crimes de sonegação fiscal ocorridos antes de 11 de dezembro de 2009 devem independer de inscrição em dívida ativa para início da persecução penal e da contagem do prazo prescricional.
(Leandro Sarcedo, advogado, doutor em direito penal pela USP e presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP; Renato Losinskas Hachul, advogado, pós-graduado em direito penal econômico europeu pela Universidade de Coimbra).