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sexta-feira, 19 de abril de 2024

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A CONFORMAÇÃO DO OUTRO

Sempre me dirão que comportamentos são maleáveis, que alguém pode transformar-se noutra pessoa. Por método, admito a possibilidade, mas mitigo a admissão: é possível, mas não é provável. Os elementos constitutivos da personalidade são estáveis e informam conteúdos e formas de ser.
As pessoas não “caem” na sua maneira de viver a vida. Primeiro, são situadas (ou faladas) no mundo, principalmente pelos pais; depois, vão-se situando: lutando um tanto, acovardando-se outro, compondo-se com o derredor, ajeitam-se. É dizer: amoldam-se na lenda que criam de si.
Lenda nossa sobre nós mesmos é uma maneira minha de nomear o que Freud chamou de fantasia e Lacan ensinou com fantasma. Essa narrativa que construímos é fundada na invenção da nossa história: supomos ser o que nos convenceram que somos mais o que nos persuadimos que somos.
Esse conto estabelece um território mental, que, com dores e sabores, torna-se nosso campo conhecido de viver. Nós o sabemos e o supomos seguro. Nos acomodamos. Poucos ousariam e raríssimos conseguiriam aventurar-se fora do mapa indicativo que têm de si próprios.
Para a compreensão psicanalítica, essa experiência seria bastante improvável. Nosso mapa indicativo é traçado pela nossa psique, que tem vontade própria, dado que nossa vida mental abriga uma dimensão inconsciente. O inconsciente, que incide sobre nossas decisões, não é controlável.
Os mecanismos de preservação do inconsciente, ademais, são atentos a mantê-lo como está, porque mudança dá origem a ansiedade. Mudar é dirigir-se para um lugar mental desconhecido. O não sabido implica risco, então, entram em funcionamento sistemas de contenção de aventuras.
No geral das vezes, a vontade impetuosa fenece sem gesto, o sujeito permanece nas suas adequações. Repete-se. Os sujeitos tendem a se repetir. No casamento vencido, no emprego desagradável, mesmo em algum desgosto consigo, arranja pretextos. À custa de si e contra o mundo, fica ali.
Claro, uma situação incontornável: já não se lida com um sujeito, mas com os sintomas de um sujeito. Seus conflitos emocionais – neuroses – expressam-se por sintomas, recursos doentios necessários para seu relacionamento doentio consigo mesmo e com suas circunstâncias doentias.
O humor do indivíduo, nesse modo de existir, se vai turbando. Em geral inconscientemente, ele se aliena das circunstâncias: ou se aniquila, embotando o seu ser, ou hostiliza a quem atribui cerceamento; preserva-se, mas não liga importância com o mundo do qual não gosta e que não gosta dele.
Adianto esses dizeres para alcançar um assunto: convivências. Nas convivências amorosas, sobretudo, costuma-se querer que o outro mude: que o outro seja, ou deixe de ser; faça, ou deixe de fazer. Quero o outro, mas quero que o outro seja e faça o que eu quero, não o que ele é e faz.
Não confio na possibilidade. Lembro o já afirmado: é improvável alguém estruturado psiquicamente de determinada maneira mudar, menos ainda porque outro alguém o quer. Não é tão simples impor mudança. Ademais, talvez o outro em questão simplesmente goste-se como é e deseje ficar como está.
Além disso, intriga-me a ingenuidade, ou a petulância, ou ambas as coisas, de quem cobra mudança. As partes se conhecem, acompanham-se, recebem-se como são. Conferem-se e se aceitam. Se a convivência se consolida, só então, iniciam-se as ingerências nas peculiaridades do outro.
Ora, o outro se apresentou, ou foi buscado, tal e qual era e, supostamente, é. Foi identificado na intimidade e se o aceitou e à sua feição singular. Mediu-se alguém que, no tanto que se pode dar, deu-se a saber. Bem, esse alguém, se tirado do seu modo de ser, não será mais quem é, ou quem foi.
Certos egos, egos ávidos, querem em tudo a projeção de si mesmos, a quem única e verdadeiramente amam. Egos narcísicos são assim: não apreciam a diferença, não têm prazer nas possibilidades tão abundantes das relações afetivas, só prováveis nas afinidades com desiguais.
Quem deseja a própria imagem e semelhança não deseja a mais ninguém. É verdade que esses tipos acabam, por tão solitários, não se encontrando, mas colidindo consigo, e, pior que tudo, tendo o mau gosto de nem de si se gostarem, de só gostarem da imagem idolatrada que projetam de si.

Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicólogo e Jornalista.

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